10 de jul. de 2014

​ RETROSPECTIVA DO PORTUGUÊS DO BRASIL

Uma abordagem histórica 
(texto retirado de Melo, 2012)

Este trabalho, como já demonstrado anteriormente, encontrou suas fundamentações na linguagem falada em pequenas comunidades cujo letramento é pouco, ou nada, desenvolvido.
O foco da pesquisa não é, de fato, a crioulização, contudo, faz-se necessário uma delineação dos fatos históricos acerca da constituição, tanto das comunidades, como do próprio português brasileiro.
Nesse mister, é perfeito o termo utilizado por Silva Neto (1963: 73) - a mancha de azeite que os portugueses deixaram na história da constituição da realidade linguística brasileira, pois é exatamente o ocorrido. O azeite está impregnado no Brasil inteiro. Leia-se “azeite” tudo o que venha de Portugal, desde os costumes até a língua, e é a língua o tema em questão.
Iniciando a história da constituição linguística brasileira, temos a primeira fase no início da colonização (1532) até a expulsão dos holandeses (1654), onde o homem branco é muito raro. A maioria da população é constituída por índios e africanos. É a fase que todos conhecem dos filmes e romances, onde o homem branco fica encantado pela índia faceira e perfumosa, diferente das europeias mal cheirosas. Dessa fase descendeu o mameluco.
Já na década de 1560 a 1600, no litoral da Bahia e Pernambuco, o índio foi substituído pelo escravo africano, muito mais forte e resistente.
A fase segunda inicia em 1654, com a vinda de portugueses ao Brasil, marco histórico para as características portuguesas atuais. O elemento indígena começa a desaparecer. Muitos fogem e uma grande porção deles, morre. Um documento datado de 1611 lamenta a extinção de numerosas aldeias de São Vicente, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia e Pernambuco, nesse documento jesuítico, diz-se que as 40 mil almas residentes na Bahia estavam reduzidas a apenas 400 (CALMON, 1959: 347-8).
Já os negros começam a aparecer mais e os brancos a se interessar pela escrava negra de pele reluzente. A influência africana é observada em todos os sentidos. Essa fase é a de expansão territorial, como lembra Silva Neto (1963):
Dá-se como que um abalo formidável da massa colonial, mais ou menos comprimida nas regiões próximas da costa; abalo que, num dado momento, a derrama pelos recessos dos altos sertões, fracionada em bandos inumeráveis, dotados de maravilhosa mobilidade.

Outra característica dessa fase é que a língua geral foi perdendo o uso, “(...) índios, negros, mestiços, brancos decaídos se entendiam num falar crioulo, linguajar de emergência, em que o branco figurava como professor involuntário e desinteressado.” (SILVA NETO, 1963: 82-3).
Foi no ano de 1694 que esmagaram e aniquilaram o famoso Quilombo de Palmares, sonho de liberdade de todo escravo da época. A população do Quilombo era de 1500 casas e mais de 20000 pessoas. Silva Neto (1963: 85) relata que nessa comunidade quilombola, o traço mais forte da cultura é a língua, e que se falava um dialeto africano do tipo bantu, porém, nesse falar africano havia boa influência do vocabulário português brasileiro: “Há de reconhecer-se, ainda, que esses negros, provenientes de engenhos brasileiros ou de possessões lusitanas, se poderiam exprimir num falar crioulizante, de base portuguesa.
O autor acrescenta ainda que os mais familiarizados com a língua portuguesa eram os angolanos. E diz ainda, que esses mais familiarizados com a língua portuguesa, ensinavam os recém-chegados ou os que tinham mais dificuldade em aprender a língua do senhor.
Já pelo fim do século XVIII aparece uma geração que se esforça por emancipar-se de Portugal. Não da língua, que continua a ser portuguesa, mas no espírito e no sentimento literário. É a geração mineira da Inconfidência.
A terceira fase começa em 1808, com a chegada do Príncipe Regente e da Corte, grande fato que transforma o Rio de Janeiro em capital do mundo português. As famíliastradicionais do campo emigram para as cidades em busca dos prazeres da vida urbana. Viu-se então uma mistura de tudo naquele momento peculiar, como nos relata Silva Neto (1963: 88):
Dos princípios da colonização até 1808, e daí por diante com intensidade cada vez maior, se notava a dualidade linguística entre a nata social, viveiro de brancos e mestiços que ascenderam, e a plebe, descendente dos índios, negros e mestiços da colônia. O grau desse falar crioulizado varia de lugar para lugar: depende da percentagem de brancos e do estatus cultural. Onde menor for o número de brancos, onde a população consistir, quase exclusivamente, de índios, negros, ou mestiços, maior será o grau de linguajar crioulizante.

Se o autor até certo momento afirma a teoria da crioulização e de uma língua de contato, num dado momento vacila e desfaz sua linha de pensamento e retoma a observação do linguista norte americano Sapir (1921: 72):
“Cada língua possui a sua deriva (drift), isto é, determinada direção evolutiva, que já encerra uma série de possibilidades. Pois, cada falar continua a deriva geral da língua comum máter, mas não consegue manter valores constantes para cada parte componente da deriva. Desvios em relação à própria deriva, a princípio leves, depois acumulados, são, portanto inevitáveis”.

Assim como foi visto no estudo de Melo (2003), algumas destas características presentes na língua falada no Brasil, tem sido relacionada por muitos estudiosos ao aprendizado precário do português por aloglotas ou a possíveis processos de crioulização ou semicrioulização, ou seja, a uma vasta gama de situações que podem ser recobertas pelo conceito mais geral de transmissão linguística irregular ou nativização, como Naro e Scherre (2003) preferem chamar, pois o termo ‘irregular’, segundo os autores, possui “CLARA CONOTAÇÃO NEGATIVA (grifos dos autores) e dá a impressão falsa de se tratar de um fenômeno anormal, errático, imprevisível”. Naro e Scherre (2003) preferem adotar o termo nativização: “o que costuma acontecer de fato é que uma língua vinda de fora se torna a língua nativa da comunidade, que perde parcial ou totalmente a plena funcionalidade de suas línguas maternas anteriores”.
Retomando o pensamento do linguista Silva Neto (1963: 107), que refuta a ideia da influência negra ou indígena, o autor retrata o contato apenas como superficial:

No português brasileiro não há, positivamente, influência de línguas africanas ou ameríndias. O que há é cicatrizes da tosca aprendizagem que da língua portuguesa, por causa de sua mísera condição social, fizeram os negros e os índios.

O autor diz que qualquer criança, branca, negra, indígena ou de qualquer raça ou cor, é capaz de aprender uma nova língua. Visto que, na época da escravidão e do convívio dosbrancos com índios e negros o contato da língua era apenas de oitiva, o aprendizado da língua portuguesa tornou-se mais generalizado que se fosse dentro de uma escola.
Já é senso comum entre os antropólogos e sociólogos que o convívio dos brancos com os negros foi muito maior que com os índios, já que aqueles conviviam dentro das casas grandes e estes ocasionalmente nas florestas (naturalmente após a falência do modelo de apresamento do nativo brasileiro).
Silva Neto (1963: 108) exemplifica seu pensamento através de um diálogo entre um senhor e sua escrava. Para conseguir se comunicar, o senhor eliminou algumas palavras, surgindo uma língua de contato:
Quanto ano?
Não tender?
Como chamar terra vosso?
Quantos filhos vós parir?
A vosso tem inda dente?
Mais adiante o autor volta a admitir ter ocorrido um semicrioulo (1963: 108): “Daí admitir-se a existência do semicrioulo, ou seja, um estágio aperfeiçoado da primitiva aprendizagem”.
Esse dualismo linguístico do português brasileiro, portanto, caracteriza todo o período colonial, entre os séculos XVI e XIX. Nas palavras de Cunha:

O Brasil foi, no decurso de mais de três séculos, um vasto país rural. Suas cidades e vilas, quase todas costeiras, de pequena densidade demográfica e desprovida de centros culturais importantes, nenhuma influência exerciam nas longínquas e espacejadas povoações no interior (CUNHA, 1985: 17).
Neste cenário pródigo em diversidade cultural, saltava aos olhos a influência da metrópole portuguesa nos negócios políticos e culturais dos pequenos centros urbanos. Neste diapasão, leciona o linguista Lucchesi (2008):
A elite colonial era naturalmente bastante zelosa dos valores europeus, buscando assimilar e preservar ao máximo (o que é previsível nessas situações) os modelos de cultura e de língua vindos da Metrópole. Desse quadro temos o significativo testemunho do cronista, que, em 1618, definiu o Brasil como "academia pública, onde se aprende com muita facilidade [o] bom modo de falar".

É evidente a preferência do padrão normativo português durante o período do Império, uma vez que a maioria dos professores de língua portuguesa nos liceus era de origem portuguesa. E pode-se dizer que a adoção de usos portugueses como modelos normativos noBrasil ainda está presente na grande maioria de nossas gramáticas escolares, em flagrante conflito com os usos atuais da norma culta brasileira, o que produz um acentuado sentimento de insegurança linguística que aflige todos os segmentos da sociedade brasileira (LUCCHESI, 2002).
O outro lado desta construção linguística estava representado pelos gentios pobres, descendentes dos índios aldeados e dos africanos escravos que produziram rudimentos de língua que tinha por base o português falado pela aristocracia, os altos funcionários da administração metropolitana e comerciantes ricos. No entanto, deste se distanciava na medida em que novos elementos linguísticos foram introduzidos. Sob essas ásperas condições, a língua portuguesa se foi disseminando entre a população pobre, de origem predominantemente indígena e africana, nos três primeiros séculos da história do Brasil.
Outro pensamento que merece ser dissecado, sobre as relações de contato linguístico no Brasil, é o de Mendonça (1936: 98). Ele retrata muito bem este cenário nas linhas a seguir:
E quando se vir que a tendência da fala do Brasil é completamente diversa da fala de Portugal, que a civilização afasta cada vez mais os dois países graças aosneologismos diferentes para as invenções, que a literatura no Brasil já se tornou brasileira, rompendo com um passado artificial para ser compreendida do povo; que as influências de fatores vários transformaram a nossa pronúncia e nosso vocabulário, criando aos poucos outra sintaxe – só existirá uma coisa a fazer: o brasileiro dar bons dias como faz na fronteira com o uruguaio, o argentino e o Paraguai.
O autor salienta (1936: 101) que não é somente no vocabulário que recebemos influências, mas também na sintaxe. Cabe aos eminentes linguistas portugueses Adolfo Coelho, introdutor do método histórico comparativo, e Leite de Vasconcelos, o mestre da dialetologia portuguesa, os primeiros esboços do que chamaram de dialeto brasileiro.
Mendonça é categórico:
E o classicismo desse português da época da colonização deixou seus vestígios bem vivos em muitos recônditos do Brasil, onde hoje o povo diz ainda mas porém, sem saber que está falando a linguagem camoniana. Não é outra a causa de muitos supostos brasileirismos serem simplesmente arcaísmos portugueses, velhos termos esquecidos na península e conservados no trópico graças a uma temperatura sempre germinativa. E a própria sintaxe brasileira não se afasta dessa origem (1936: 120).
Em meio à literatura e história da língua portuguesa no Brasil, encontra-se com o poema de Vargas Neto que celebra as excelências dos tipos cruzados dos brasileiros (1936: 123):
Mestiças
Chinóca
Cacimba de algum verão!...
Flôr madura, polpa verde,
lindo fruto temporão!
Tu tens mormaço nos olhos,
camoatim no coração...

Mulata
Bronze sonoro, ondulando...
Com tal graça tu meneias
as tuas ancas redondas,
que o teu corpo é um grupo de ondas,
com o sol fechado nas veias...

Cabôcla
E’s tigipió do carinho...
Fruta que mata ou acalma,
veneno bom do caminho...
Não há quem cure um espinho
quando êle se crava nalma...

Cabrocha
Flôr canalha! Debochada!
Maxixe de carne em flôr...
De alma alegre ou desolada,
desatas a gargalhada,
pois tens na mesma risada
gritos de insulto e de amor...

O contato com o índio nativo do Brasil teve repercussões distintas, terminando por influenciar menos os traços linguísticos do português brasileiro. Mendonça retrata todo percurso do índio quando os colonizadores vieram tomar-lhes as terras, pois os indígenas diante da  presença da raça colonizadora não se mostrou amigo em nenhum momento e por isso mesmo não conseguiram ser escravizados, nem quiseram aprender a língua de branco.Mesmo sendo menores que os negros, esses vestígios deixados pelos índios, são a maioria no léxico e na fonologia, como salienta o autor (1936: 159):
Quando duas senhoras brasileiras conversam, ouve-se muitas vezes este dissílabo –em-em; ora este em-em é o sim das senhoras – na língua tupi. A língua tupi não teml; o nosso homem do povo paulista, mineiro, guaiano ou fluminense nunca pronuncia o l com o h; não diz: melhor, mulher, milho, e sim: mio, muié, e mió, porque o tupi não tem l.
Na sintaxe, a influência africana é muito menos sensível. Os fenômenos de mais importância seriam os de decalque, em que o negro traduziria suas ideias em nossa língua, partindo do seu modo de falar africano. Falando português, os negros do Brasil faziam a concordância aliterativa, repetindo a partícula inicial em todo corpo da frase, como se fosse prefixo concordante. Conforme o exemplo retirado de Mendonça (1936: 193):
Z’ere              z’mandou              z’dizê
êle                  mandou                dizer
Outro interessante trecho em Mendonça (1972: 69) que exemplifica parte da história :
Estes todavia não persistiram nem deixaram de si vestígios. Podemos augurar da sua existência por frases soltas de uma pastoral de D. Correia Neri que assim faz falar um preto: Por conta de quem camaná, F. não bate caliquaqua? o Cambône responde: - Por conta de caussê e mais adiante: Por conta de quam camaná, F. não tem café – tudo?
Nota-se em ambos a partícula ca que é sem dúvida o prefixo denotativo de alguma classe. Onde, porém, se há apontado a influência sintática do africano como no português é relativamente à colocação dos pronomes átonos. Gonçalves Viana (1931: 130) assegura que esta construção sintática é crioula, como as particularidades de pronúncia brasileira, que das de Portugal se afastam.
O Português do Brasil continua sendo um grande desafio para os sociolinguístas mundiais. As mais diversas teorias sobre a formação da unidade linguística nacional tem sidoformuladas sobre o seu dualismo (ou mesmo trialismo).
Neste sentido, o Professor Gregory Guy (1981) afirma existir um Português Popular Brasileiro (Popular Brazilian Portuguese) que difere de muitas formas das variáveis padrão da língua falada nas salas de aula ou pelos brasileiros letrados. Em seus estudos, ele questiona a evolução e a origem do PPB. A partir daí levanta possíveis hipóteses. A resposta mais simples seria supor que o PPB sofreu alterações naturais, assim como todas as línguas, e divergiu da variedade padrão, pois os falantes de um nível elevado, como é de costume, têm resistido às inovações e continuam falando uma variedade mais conservadora da língua, hipótese defendida também por Naro e Scherre (2003). A outra hipótese seria a de que o PPB teria sua origem em uma língua crioula falada predominantemente pelo massivo contato com o povo africano no período colonial, e que, através desse excessivo contato com falantes do português padrão, passou por umadescriolização, hipótese defendida por Lucchesi (2008)Esta hipótese se baseia em observações sobre a história social do Brasile semelhanças com outros países onde aconteceramsituações sociais parecidas e desenvolveram línguas crioulas.
A questão da crioulização prévia no PB tem sido levantadapor muitos autores em muitos trabalhos e pesquisas. Vejamos o queMattoso Câmara, por exemplo, tem a dizer sobre o assunto emrelação às diferenças entre o Português Europeu e Brasileiro:
A explicação para as discrepâncias entre as línguas do Brasil e de Portugal não pode ser atribuída a um suposto substrato Tupi ou a uma influência Africana profunda.Logicamente, os dialetos populares do Brasil são outra questão. Neste caso, é bem possível que um substrato indígena... e vários dialetos africanos tiveram efeitosfonológico e gramatical. (1972: 21-2)

Parece, então, que Mattoso fez uma clara distinção entre o português padrão e o PPB (ou Português coloquial), que difere doportuguês europeu só por causa da divergência dialetal regular,e o dialeto popular, que pode ter tido uma história crioula. Ao discutir essas origens crioulasele diz: parece que... Os escravoslogo criaram um Português criouloA distinção que Mattoso fazé crucial, certamente ninguém gostaria de afirmar que o padrãobrasileiro mostrou evidências de crioulizaçãoSe a influênciacrioula é encontrada em algum lugar em PB hoje, ela será encontrada na fala popular.
Tal como a citação de Mattoso indica, a atenção também tem sido dada à possibilidade de línguas indígenas, o Tupiprincipalmente, ter influenciado o PPB. Embora seja certo que oTupi e outras línguas indígenas contribuiram com muitas palavraspara o léxico do PB, e que por muitos anos falou-se o Tupi (oulíngua geral) – ocorreu o bilinguismo no Português em determinadas áreas, no entanto, o efeito dos povos indígenas do Brasil nalíngua e na cultura do Brasil não foi tão grande quanto dos povos africanosEm primeiro lugar, eles eram tão poucos em número e morreram tão rapidamente em face às doenças e armas européias que o seu impacto demográfico foi muito pequeno. E em segundo lugar, eles não configuravam o tipo de relações sociais e situações que normalmente levam acrioulizaçãoA maioria das línguas crioulas mais conhecidassurgiu (provavelmente de pidgins precursoras), como resultado da escravidão ou de trabalho escravo, nas comunidades de falarecém-criada, onde muitos povos diferentes que não compartilhamuma língua em comum (Hymes 1971, Bickerton, 1975, Valdman, 1977). Esta situação obtida por escravos africanos trazidos para oplantio e minas do Brasil colonial, mas não, ordinariamente, para o Tupie outros povos indígenas, que, mesmo se eles foram escravizadospelo Português, pelo menos ainda em sua terra natal e aindacercado por pessoas que falavam a mesma língua.
Mendonça, em seu livro A Influência Africana noPortuguês do Brasil, atribui o grande interesse pela línguaindígena no PB à fase do Romantismo na literatura que se tornou moda durante o Império:
O negro que sua no eito e… trabalha sob o chicote não oferece a mesma poesia do índio aventureiro que erra pelas floretas. Se um alicerça obscuramente a economia nacional com lavoura da cana de açúcar e do café, e a mineração do ouro, o outro sugere motivos sentimentais para o passatempo dos elegantes do Império. (Mendonça 1935: 109)

Na procura de influências no PB, encontraremos muitos vestígios dos povos africanos, pois o contato foi muito mais numeroso e prolongado. Enquanto que com os indígenas foi mais curto e superficial. O impacto da cultura africana com a cultura brasileira foi muito grande, tanto que até hoje uma se mescla à outra não se sabendo onde uma acaba e termina a outra. Esse contato influenciou a religião, a música, a culinária, o modo de se vestir, agir e, como podemos ver, a maneira de falar.
Se estamos a decidir entre as duas hipóteses sobre a origem do dialeto popular - crioulização natural - temos de lidar com a questão que constitui evidência apropriada nesta matéria. A argumentação linguística comum tende a confiar exclusivamente em evidência linguística interna, mas é duvidoso que tal será suficiente, no caso presente. Não existem critérios amplamente aceites, mesmo entre os especialistas pidgin /crioulaspara determinar se uma característica linguística dadoé o resultado de uma crioulização, embora as listas decaracterística típica crioula têm sido propostos (por exemploBickerton 1977, Tsuzaki, 1971). Na ausência de um bom testelinguístico, portanto, é necessário considerar a evidência adicional de história social. Como Southworth (1971) coloca:
A fim de fazer um antes pedido plausível de pidgnização, é necessário mostrar queas circunstâncias necessárias sociais já existiam no momento certo, e também que os efeitos característicos linguísticas de pidginização estejam em evidência. (1971: 268)

Com base nas ideias expostas acima, o Professor Gregory Guy (1981: 287) é enfático ao afirmar que:
Não parece haver qualquer evidência, seja linguística ou social, o que por si só é suficiente para decidir a questão. Há certas circunstâncias sociais que parecem sernecessárias para haver formação de um pidgin / crioulo e, como veremos, eles certamente ocorreram no Brasil ao mesmo tempo.

Lucchesi (1994, 1998, 2001, 2002 e 2006), caracteriza assim a polarização sociolinguística brasileira: “Um dos maiores desafios que se colocam para a linguística brasileira é a caracterização da realidade sociolinguística do país, bem como de sua formação sócio histórica, com fundamentos empíricos consistentes”.
autor busca mostrar que a materialidade linguística brasileira só pode ser considerada a partir da análise concreta de seus processos sóciohistóricos. Lucchesi parte do princípio de que é possível estabelecer uma dualidade do português falado com base na história sociolinguística do Brasil. De fato, o uso da língua originária em Portugal configurou diferentes matizes quando se leva em consideração o que se falava nos centros urbanos desenvolvidos e o utilizado nos cantões pelas populações indígenas e africanas. Por conseguinte, pode-se inferir essa “segunda língua” e acabou se tornando a mais importante para essa imensa comunidade de excluídos, gerando mudanças na gramática e nos usos do português do Brasil.
Desse conflito entre a norma culta da elite escolarizada e a norma popular de amplo uso pela maioria alienada da educação formal, forma-se a língua brasileira, reflexo de sua pluralidade sociocultural.
Em poucas palavras, esses seriam os dois grandes vetores da polarização sociolinguística do Brasil: de um lado, uma norma culta derivada dos padrões linguísticos da elite da Colônia e do Império; de outro, as variedades populares do português brasileiro, marcadas por um conjunto de mudanças estruturais induzidas pelo contato entre línguas, através do processo de transmissão linguística irregular (Lucchesi, 2003 e 2008). E a consideração desse cenário polarizado é crucial para a compreensão dos grandes processos de mudança em curso desde o século XX, os quais vão definir as feições atuais da realidade linguística brasileira.
O desenvolvimento do Brasil, no século XX, promoveu uma reestruturação socioeconômica com reflexos em diversos campos. Seus principais vetores foram aindustrialização e a urbanização da sociedade brasileira. No plano linguístico, o êxodo rural promoveu a conversão de uma ampla variação geográfica em uma profunda variação sociocultural.
Os vernáculos ficaram por muito tempo mais ou menos circunscritos às regiões interioranas e isoladas. No século XX, assistimos, porém, a dois fenômenos de notáveis consequências linguísticas: a migração das populações de pequenas cidades e zonas rurais para os grandes centros e a difusão dos meios de comunicação de massa.
Resumindo e definindo o escopo do Projeto Vertentes, faz-se necessária a alusão, aqui, de um trecho elucidativo captado do seu sítio na rede mundial:
Portanto, após ter pesquisado a fala mais recôndita de antigos quilombos, das zonas rurais e pequenas cidades do interior do estado da Bahia, o Projeto Vertentes chega à capital, metrópole, com mais de dois milhões de habitantes, para descortinar e desvendar o panorama sociolinguístico de sua norma popular. Com isso, visa a trilhar as vertentes de um importante pólo da realidade sociolinguística do país que reúnem os reflexos de processos de variação e mudança induzidos pelo contato entre línguas no passado e pelos processos de difusão e nivelamento linguístico a partir dos modelos urbanos cultos no presente.


Assim, muitas culturas de oralidade formaram-se no vasto Brasil de ontem e de hoje. Muitas línguas, dialetos ou variações do português que encontramos são de raízes diversas. Não se pode afirmar de onde vem os falares das comunidades, assim como as comunidades de Barra e Bananal, pois não possuem um registro formal de língua escrita. O que se sabe é que as comunidades foram remanescentes de um Quilombo de outrora e hoje se fala um português carregado de influências crioulas. Um melhor conhecimento das comunidades será colocado em melhor amplitude no capítulo III a seguir.
Do exposto até aqui, é possível inferir que não há unanimidade quanto a existência ou não de um Português Brasileiro derivado do europeu. O certo é que, houve exposição entre as línguas europeia e africana que deixaram marcas em comunidades isoladas brasileiras. Algumas destas marcas foram aprofundadas neste trabalho acadêmico.